fabíola borges

dissolução

fevereiro 07, 2016

Ao fitar por muito tempo um ponto fixo na parede, às vezes acabo não sabendo mais quem sou nem onde estou. Então, sinto claramente falta da minha identidade, como se eu tivesse me tornado, de repente, um estrangeiro perfeito. Esse personagem abstrato e minha pessoa real disputam em pé de igualdade minha convicção.

No instante seguinte minha identidade se recompõe, como naqueles cartões estereoscópicos em que as duas imagens por engano às vezes não coincidem e só quando o operador as ajusta, sobrepondo-as, surge a ilusão de relevo. Nessas ocasiões, o quarto se me apresenta com um frescor inédito. Ele retoma sua consistência anterior e seus objetos pousam nos devidos lugares, como um torrão de terra esfarelado numa garrafa cheia d'água, que vai se assentando em camadas de elementos diferentes, bem definidas e de cores variadas. Os elementos do quarto se estratificam em seu próprio contorno e no colorido da antiga lembrança que tenho deles.

A sensação de distanciamento e de solidão nos momentos em que minha pessoa cotidiana se dissolve em inconsistência é diferente de quaisquer outra sensações. Quando dura muito, ela se transforma em medo, em pavor de não conseguir nunca mais me reencontrar. Ao longe, persiste uma silhueta insegura de mim mesmo rodada por um grande halo de luz, à maneira dos objetos visíveis através da névoa.

A terrível pergunta "quem realmente sou" pulsa no meu âmago como um corpo perfeitamente novo, que cresceu dentro de mim com pele e órgãos que me são completamente desconhecidos. Uma lucidez mais profunda e mais essencial que a do cérebro exige uma resposta. Tudo o que é capaz de se agitar no meu corpo se agita, se debate e se revolta com mais força e de modo mais elementar do que na vida cotidiana. Tudo implora uma solução.

Por vezes reconheço o quarto assim como ele é, como se eu fechasse e abrisse os olhos: a cada vez o quarto é mais claro — assim como uma paisagem vista pela luneta, cada vez mais organizada à medida que, ajustando as distâncias, percorremos todos os véus de imagens intermediárias. Finalmente reconheço-me a mim mesmo e reencontro o quarto. É uma sensação de leve embriaguez. O quarto se apresenta extraordinariamente condensado em sua matéria, e eu implacavelmente sou devolvido à superfície das coisas: quanto mais profunda a onda de imprecisão, mais alta é a sua crista; nunca, em nenhuma outra circunstância além de tais momentos, me parece mais evidente que cada objeto deve ocupar o lugar que ocupa e que eu devo ser quem sou.

Atormentar-me em insegurança não tem então nenhum motivo; é um simples arrependimento de não ter encontrado nada em sua profundidade. Apenas me surpreende que uma total falta de significado tenha podido estar tão ligada à minha matéria íntima. Agora que me reencontrei e tento expressar minha sensação, ela se apresenta diante de mim perfeitamente impessoal: um simples exagero da minha identidade, que brotou como um câncer a partir de sua própria substância. Um tentáculo de medusa que se estendeu além da medida e que ansiou exasperadamente em meio às ondas até enfim voltar para baixo da ventosa de gelatina. Em alguns momentos de desassossego percorri assim todas as certezas e incertezas da minha existência, até voltar definitiva e dolorosamente para minha solidão.

Agora, trata-se de uma solidão mais pura e mais patética. A sensação de distanciamento do mundo é mais clara e mais íntima: uma melancolia límpida e suave, como um sonho resgatado no meio da madrugada. [...] Só nesse desaparecimento súbito de identidade é que reencontro minhas quedas no espaço maldito de outrora, e só nos momentos de imediata lucidez que se seguem à volta à superfície é que o mundo me surge na atmosfera incomum de inutilidade e anacronismo que se formava ao meu redor quando meus transes alucinantes logravam derrubar-me.

— Max Blecher. Acontecimentos na irrealidade imediata. Cosac Naify. p. 7-10.
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